Etnografia
Religiosa Ioruba e Probidade Científica
Pierre
Verger
Revista
Religião e Sociedade, nº 8
São
Paulo, 1982
ISER,
Editora Cortez
Retomo,
trocando duas palavras, o título de um artigo de três páginas
escrito pelo saudoso Bernard Maupoil, cuja referência retiro da
Bibliographie africaine de Fa, publicada no início de
seu livro sobre La géomancie à l’anciene côte des esclaves
(Maupoil, 1943:19). Não tive a oportunidade de ler sua Ethnographie
dahoméene et probité scientifique, publicada em 1937 na
Afrique Française, mas acho o título sugestivo e ele
me incita a tecer considerações semelhantes sobre a etnografia
religiosa iorubá.
As
definições dadas aos orixás, os deuses iorubás, foram
efetivamente, a partir de determinada época (1884, para sermos
precisos) embelezadas com detalhes tão pitorescos quanto inexatos.
Essas definições foram a seguir eruditamente retomadas, doutamente
citadas e entusiasticamente comentadas pela maioria dos que a partir
de então escreveram sobre o assunto.
Ao
longo de minhas pesquisas, pude constatar de que maneira informações
expressas muitas vezes descuidadamente por pessoas, respeitáveis
noutros domínios, criaram uma tradição aparentemente lógica, mas
enganadora. Com o tempo foi-se assim acumulando vasta documentação
escrita, tida como erudita porque baseada em textos, a única fonte
válida aos olhos dos letrados, mesmo que esses textos fossem
inspirados por escritos anteriores incorretos e até contrários à
verdade. Essas informações foram copiadas e publicadas inúmeras
vezes, sem que sua autenticidade fosse posta em dúvida.
O
padre Labat já constava (Labat, 1831:143), e não sem ironia, em
1772, "que certas informações foram dadas por vários autores"
e acrescentava: "mas talvez não tenha sido senão a opinião do
que as escreveu primeiro e que os outros seguiram e copiaram sem se
importar se estavam bem ou mal fundadas".
Eis
porque somos obrigados a pôr em questão neste artigo certas
informações que estão na origem de sistemas teogônicos e
cosmogônicos eruditos e a constatar que, estando desprovidas de
fundamentos, não passam de gratuidades ou de construções mais ou
menos habilidosas do espírito.
Lendas
da Criação do Mundo dos Iorubás
Entre
os Iorubá existem duas versões sobre a criação do mundo. Elas
correspondem às tradições de duas cidades que disputam a hegemonia
do mundo iorubá: de um lado Ifé, chamada de berço da civilização,
e de outro Oyó, que deteve o governo efetivo. Os habitantes dessas
duas cidades divinizaram os fundadores das dinastias que nelas
reinaram - Oduduá para os primeiros e Oranmiyan para os segundos -
transformando a tradição histórica da fundação das duas cidades
na tradição da criação do mundo. Tanto numa quanto na outra o
herói criador do mundo chegou do Além tendo recebido do Deus
Supremo, Olodumaré, o saco da criação contendo uma substância
escura, de natureza até então desconhecida.
Essa
substância, lançada sobre a superfície das primeiras águas,
formou um montículo de terra sobre o qual pousou uma galinha com
cinco dedos. A galinha começou a arranhar o monte com os pés e com
o bico e espalhou a matéria que recobriu pouco a pouco as águas e
formou a crosta terrestre, da qual Oduduá, para Ifé, e Oranmiyan,
para Oyó, se tornaram senhores.
No
caso de Ifé, a lenda se complica com uma rivalidade entre Obatalá
(também chamado Orixalá), enviado por Olodumaré para criar o mundo
e Oduduá, que se aproveitou de um momento de intemperança de seu
rival, o qual, tendo bebido em excesso vinho de palma quando estava a
caminho para cumprir a sua tarefa, embriagou-se, caiu e adormeceu.
Oduduá, que vinha atrás, surrupiou o saco da criação e tornou-se
assim, ele próprio e em seu lugar, o senhor do mundo. Mais tarde,
quando se reencontraram, Oduduá e Obatalá discutiram e lutaram
ferozmente. Detalhes sobre esse assunto foram dados em outra obra
(verger, 1965:cap.II e III).
Essas
relações tempestuosas entre divindades, como já registramos, são
transposições para o domínio religioso de acontecimentos de
caráter histórico, que poderão ser resumidos da seguinte forma:
Oduduá, o fundador da cidade de Ifé, teria encontrado à sua
chegada uma população autóctone já instalada naquelas paragens,
os Igbô, cujo rei teria sido Obatalá (Orixalá). Oduduá, depois de
ter vencido Obatalá, se teria apossado de seu reino, da mesma forma
como na lenda ele teria roubado o saco da criação, tornando-se
senhor do mundo em detrimento de Obatalá.
Essa
lenda da criação do mundo por Oduduá só se tornou conhecida do
grande público e dos etnólogos em 1912, quando Frobenius publicou
os resultados de sua viagem à África (Frobenius, 1912:283). A lenda
da criação do mundo por Oranmiyan tinha já sido publicada por Jean
Hess na Revue de Paris em 1896 (Hess, 1896:603-606) e
em livro dois anos mais tarde (Hess, 1898:117-176). Mas ela só
interessou aos amadores de literatura exótica. Ficou e permanece
totalmente ignorada do mundo da antropologia, ainda que 58 páginas
do livro de Hess constituam o primeiro documento publicado acerca da
história dos Iorubá, recolhida pelo autor de Oyó, "desde que
aí se refugiou em 1893, depois de ter sido atacado, roubado e ferido
na terra dos Bariba, ao norte de Savé, e que seus homens, batendo em
retirada, o abrigaram numa aldeia na fronteira iorubá. Daí, ele foi
recolhido e tratado na missão católica de Oyó, onde foi o primeiro
europeu e registrar os cantos tradicionais sobre a criação do
mundo, o nascimento do povo iorubá e a história de seus reis".
Foi preciso esperar até 1921 para que The history of the
Yoruba fosse publicada pelo reverendo S. Johnson (Johnson, 1921),
cujo manuscrito data de 1897, remontando quase à mesma época das
publicações de Jean Hess.
Como
Nasceram as Falsas Tradições sobre os Deuses Iorubás
Ao
lado e independentemente dessa tradição oral recolhida no coração
da terra iorubá, a etnografia religiosa iorubá tem sido vítima,
desde 1884 (e o é ainda), de informações fantasistas recolhidas
muitas vezes em regiões periféricas daquelas onde a civilização
iorubá se desenvolveu. Felizmente, nos é possível encontrar os
autores, assinalar o momento exato do nascimento e o encaminhamento
dessas noções errôneas através dos diversos escritos que têm
tratado da questão. Também nos é fácil determinar o grau de
competência e de seriedade, avaliar o crédito que pode ser
concedido às suas informações e compreender o que está por trás
de tudo que possa influenciar o caráter dos informes publicados por
eles.
Nas
linhas seguintes desenvolveremos esses diversos pontos
detalhadamente, pois essas falsas tradições têm figurado como um
postulado e freqüentemente têm sido aceitas sem discussão por
numerosos autores.
Os
primeiros informes relativos aos deuses iorubás foram publicados
por: Ajayi, batizado com o nome de Samuel Crowther, nascido em 1810
em Oxogún, aldeia pertencente ao reinado de Oyó. Ele foi raptado e
feito escravo pelos Fulani com a idade de 11 anos, vendido em Lagos e
embarcado para ser revendido ao Brasil na "Esperança Feliz".
Mas o navio negreiro que o transportava foi aprisionado por um
cruzador britânico da esquadra de repressão ao tráfico de
escravos, e ele desembarcou já livre, em 7 de abril de 1822, em
Freetown, na Serra Leoa. Foi batizado em Londres em 1825 e tornou-se
missionário protestante da Church Missionary em sem próprio
país.Traduziu parte da Bíblia em iorubá e em 1852 publicou um
vocabulário iorubá (Crowther, 1852). Nesse vocabulário, deu
algumas definições sobre orixás, de certo modo válidas, ainda que
com tendência a chamar de deusas o que os Iorubá adoram como
deusas. Essa imprecisão pode ser explicada pela tenra idade em que
ele foi arrancado à sua família e ao seu meio.
O
reverendo T. J. Bowen, missionário batista americano, que passou
seis anos em território iorubá. Publicou um dicionário em 1858
(Boewn, 1858:cap.16), onde fornece algumas precisões a mais sobre os
orixás. Suas informações são dignas de confiança (Verger,
1957:171 e 509).
O
abade Pierre Bouche, das Missões (católicas) Africanas de Lyon, que
permaneceu na África entre 1866 e 1875 e deu as mesmas informações
que seus predecessores, com algumas variantes (Bouche, 1885).
O
padre Noel Baudin, que viveu na África entre 1869 e 1883 em regiões
não-iorubás, em Porto Novo com os Gun, em Uidá com os Hweda e em
Tongo com os Ewe, e teve uma curta permanência em Topô e Lagos,
cidades que surgiram depois de longa sujeição ao reino de Benim. De
passagem pela França em 1884, publicou um dicionário (Baudin, 1884
a) altamente influenciado pelo de Crowther (as rubricas consagradas
aos deuses iorubás estão redigidas nos mesmos termos) e publicou
igualmente um livro (Baudin, 1884 b) que deu origem à maior das
confusões sobre o conhecimento dessa religião, pois as informações
publicadas por ele estão longe, como vimos, de terem sido colhidas
em fontes iorubás. As informações fornecidas são extravagantes.
Baudin foi levado, é verdade, por um zelo missionário evidente,
acrescido de um desprezo extremo, que não procurou dissimular, por
tudo que dizia respeito à religião daqueles que ele tinha por dever
e vocação converter.
O
tom do livro de Baudin revela a certeza de uma fé bem fundada e o
sentimento bem ancorado da indignidade dos nativos. Eis alguns
trechos bastantes reveladores do seu estado de espírito: "Os
feiticeiros (Baudin, 1884b:86) são seres desprezíveis, mentirosos,
preguiçosos, hipócritas, impudicos e refinados ladrões. Geralmente
têm um aspecto sujo, vestimentas ridículas e esfarrapadas, e os que
molham as mão em sangue humano têm um ar bestial, feroz e
repugnante... Quanto aos deuses e deusas, com suas ridículas lendas,
os grandes feiticeiros não acreditam neles... Os ídolos (ib:
89) modelados sobre o tipo mais feio de negro de lábios grossos, de
nariz chato e de queixo retraído, são verdadeiras imagens de velhos
macacos". Animado por tais sentimentos, o autor não pôde
estabelecer relações de confiança e de estima recíproca, úteis
em pesquisss desse tipo. Não é de admirar portanto a extrema
confusão que reina nas informações relatadas em seu livro e não
devemos esquecer, sobretudo, que os dados recolhidos o foram em
lugares pouco representativos das tradições iorubás, onde o pouco
que se podia encontrar se chocava e se misturava em Uidá com a
religão dos Fon, dos Hweda e dos Hwala, em Porto Novo, com a dos
Gun, e em Lagos, com as contribuições de Benim. Baudin esteve
realmente em Abeokuta e em Oyó, em território iorubá, mas já em
1886, depois da publicação do seu livro.
A
confusão Criada pelo Padre Baudin
Falamos
acima da criação do mundo por Oduduá em Ifé, e da rivalidade que
o opôs a Obatalá (Orixalá), de quem roubou o saco da criação. Os
nomes desses orixás aparecem impressos pela primeira vez, que eu
saiba, em 1852, no vocabulário da língua iorubá de Crowther
(Crowther, op.cit.). O autor indica em rubricas separadas, por
um lado, que "Oduá ou Oduduá (Crowther, op.cit.: 207) é
uma deusa de Ifê, tida como a suprema deusa do mundo" e
acrescenta que "o céu e a terra são duas grandes cabaças (ele
queria dizer meias cabaças, igbá), que, uma vez fechadas (ou
mais precisamente, colocadas uma sobre a outra, formando um
recipiente fechado), não podem ser abertas (separadas)". Afirma
ainda que havia "uma alusão à aparente concavidade do céu,
que parece tocar a terra no horizonte". Por outro lado, indica
que "Obatalá (é) a grande deusa iorubá, a artesã do corpo da
matriz" (ib.: 228). Ao mesmo tempo, Orixalá é indicado
como sendo "a grande deusa Obatalá" (ib.: 223). Já
assinalamos a tendência de Crowther a chamar os deuses de deusas,
mas é evidente que nos encontramos na presença de duas divindades
distintas: Oduduá e Obatalá (Orixalá).
Bowen
publicou em 1856 (Bowen, op.cit.: cap.XVII), no seu dicionário
iorubá, mais uma vez duas rubricas separadas: "Oduduá é o
universo, está localizado em Ifé" e "Obatalá é tido
como o primeiro, a maior coisa já criada. Outros, entretanto,
afirmam que ele não é nada mais do que um antigo rei iorubá. Sua
mulher é Iyangba, a mãe que recebe, representada acariciando uma
criança".
Richard
Burton cita e copia em 1863 Bowen para Obatalá e Crowther para
Oduduá (Burton, 1863: 185 e 192). O abade Pierre Bouche publica em
1885 um livro onde fornece as mesmas informações, mas acrescenta
num espírito de sincretismo (Bouche, op.cit.: 272) que a
deusa Iyangba se parece muito com a Santa Virgem. "Como ela,
segura um menino nos braços; chama-se A Mãe que Salva (e não que
recebe), ela salvou os homens". O abade Bouche estava longe de
supor que Iya Agba, a mãe idosa e respeitável, fosse um eufemismo
utilizado para saudar Iyami Oxorongá, a feiticeira dos Iorubá
(Verger, 1965: 142).
A
maior confusão foi criada em 1884 pelo padre Noel Baudin,
notavelmente mal informado sobre a religião iorubá e dotado de uma
fértil imaginação. Ele junta Iyangba e Oduduá, que até então
eram deuses distintos, e os funde numa única e mesma divindade. Para
completar essa embrulhada, intromete ousadamente Obatalá (Orixalá)
no meio das duas meias cabaças descritas por Crowther, as quais
viram uma cabaça única, munida de uma tampa. Completa esse "sutil
ponto de vista" com uma estranha lenda (Baudin, 1884 b: 89) onde
"Obatalá e Oduduá" estavam no princípio estreitamente
apertados e como que encerrados numa grande cabaça - Obatalá no
alto, sob a tampa, e Oduduá embaixo, afundados nas águas,
envolvidos em profundas trevas, com a noite, o medo e a fome correndo
em todas as direções... Oduduá ficou feia e cega em conseqüência
de uma briga doméstica na qual Obatalá lhe arrancou os olhos para
obrigá-la a ficar quieta. Ela, na sua cólera, o amaldiçoou e
disse-lhe: "Terás caramujos para te alimentares... Com efeito,
este é o principal sacrifício que os negros oferecem a Obatalá".
Não
se pode ver muito bem o que essa "maldição" pode ter de
dramática. O caramujo constitui um alimento apreciado também na
África. Citemos de passagem, para comprová-lo, uma lenda publicada
em outro lugar (Verger, 1965: 211), onde Orixalá oferece caramujos a
Odu-Iya Agba, o que provoca entusiástico comentário: "Aquilo
era bom. Nunca antes lhe tinham dado de comer coisa tão boa. Esses
caramujos que Orixalá come, devem-lhos dar também daqui em diante".
O
padre Baudin acrescenta, para a alegria dos futuros estruturalistas,
que "Obatalá é tudo o que está em cima e Oduduá é tudo o
que está em baixo. Obatalá é o espírito e Oduduá é matéria.
Obatalá é o firmamento e Oduduá a terra, que é simbolizada por
uma cabaça branca munida de uma tampa, que se coloca nos templos".
As
Informações Fantasistas do Padre Baudin
O
padre Baudin mistura e confunde com o culto de Obatalá, e sem o
menor discernimento, o culto de deuses pertencentes a etnias
totalmente diferentes. Ele nos revela gravemente que "em Porto
Novo (Baudin, 1884 b:8) Obatalá é ainda conhecido sob o nome de
Onsé. Em todos os casos duvidosos , o rei recorre a ele para
descobrir a inocência ou culpabilidade dos acusados. Esse "fetiche"
consiste num grosso cilindro de madeira oca, com um metro de altura e
da grossura de um homem (...) Coloca-se o "fetiche" sobre a
cabeça do acusado que está de joelhos e o segura com toda a força
de suas duas mãos. Se o "fetiche" cai para a frente, o
acusado é declarado inocente; se cai para trás, é proclamado
culpado". "Havia", segundo Baudin, "uma criança
metida dentro do cilindro para provocar a queda numa direção ou
noutra". Essa descrição pitoresca e divertida do padre Baudin
não tem, infelizmente, nada a ver com Obatalá-Orixalá nem com a
etnia iorubá.
Mais
adiante (ib.: 12), Baudin divaga e faz de "Obatalá e
Oduduá uma só e mesma divindade hermafrodita. Essa idéia é
representada por uma estátua que só tem um pé e um braço, com uma
cauda terminada por uma bola ou um globo". Em seguida
acrescenta, sem o menor discernimento, que "ambos se encontram
ainda sob os nomes de Aroni ou Aja", e diz "mas agora
decaíram pouco a pouco ao nível de gênios ou duendes".
O
padre Baudin despoja em seguida Obatalá e Oduduá de seu caráter
hermafrodita para os separar "em duas divindades perfeitamente
distintas", que são então representadas separadamentes:
Obatalá sob a forma de um guerreiro e Oduduá sob a forma de uma
mulher amamentando uma criaça (retornando às características de
Iyangba de Bowen e do abade Bouche).
Um
pouco mais adiante, o padre Baudin separa ainda mais completamente
Obatalá e Oduduá, "que não estão mesmo mais associados
conjugalmente" e faz reinar Oduduá como soberana e deusa em
Ado, cidade outrora dependente de reino de Benim (chamado Ado ou Edo)
e submetida durante algum tempo a uma influência não iorubá. Cada
vez mais inspirado o padre Baudin continua a sua descrição: "Um
caçador encontra um dia Oduduá que passeava na floresta. A deusa
propõe-lhe ficar com ele. Assim vivem durante muito tempo,
entregando-se ao prazer da caça e da pesca e passando o restante do
tempo numa cabana de folhagem posta ao pé de uma árvore no meio da
floresta. Finalmente a deusa enjoa do mortal, como havia acontecido
com o imortal, e parte, prometendo-lhe que o protegeria sempre, a ele
e a todos que se estabelecessem naquele lugar e lhe erigissem um
templo no local da cabana. Muitas pessoas vieram alí se fixar e
dessa forma foi criada Adó que significa prostituição, em memória
da deusa (...), e onde se celebram jogos imundos em sua honra".
O padre Baudin se entrega a insinuações marotas, mas parece ignorar
que há numerosas cidades iorubás que têm esse nome. Citemos Adó
Ekiti (Abraham, 1958:155), cujos habitantes vieram de Benim e onde os
jogos nada têm de particularmente imundos.
Os
Compiladores e Discípulos do Padre Baudin
O
Tenente Coronel A. E. Ellis publicou por sua vez em 1894 as mesmas
divagações, cuidadosamente copiadas por ele do livro do padre
Baudin, e, para melhor completar o sistema dualista do tema da falsa
dupla Oduduá-Obatalá e o tornar comparável à do Yang e do Yin
chinês, não hesitou em aproximar a "deusa" Oduduá de
dudu (Ellis, 1894) negro em iorubá, para a opor a funfun,
a cor branca de Obatalá. Mas o tenente-coronel britânico não levou
em conta as diferenças de tons (de uma importância primordial em
iorubá) existentes entre essas duas palavras.
Além
disso, os adeptos de Duduá no Daomé usam colares brancos, pela
simples razão que Duduá é o nome dado nessa região do Domé a
Obatalá. Mais recentemente em 1950, o padre Bertho publicou um arigo
(Bertho, 1950:74) onde declarava ter visto em Porto Novo, no antigo
palácio real de Akron (Lokoro dos Iorubá), "um altar dedicado
a um casal de divindades, Lissa-Oduduá (associando o nome de um vodu
fon com o de um orixá iorubá). "Lissa era representada",
escreveu ele, "por uma cabaça branca na frente de um muro
pintado de branco, enquanto Oduduá o era por uma cabaça negra sobre
um muro pintado de preto". (É preciso esclarecer que não se
trata, nessa descrição, de uma cabaça única cortada lateralmente
em duas, ou mesmo de duas meias cabaças colocadas uma sobre a outra,
mas de duas cabaças completamente separadas. Interessado por esta
descrição, fui visitar esses lugar em 1952.
A
realidade era inteiramente outra. O padre Bertho tinha feito uma
terrível mistura, pois Lissa é para os Fon o que Orixalá é para
os Iorubá, e Duduá é o nome dado em Porto Novo a esse mesmo
Orixalá. O casal era formado por uma divindade única e havia
realmente "uma cabaça branca na frente de um muro pintado de
branco", mas era de Duduá (que seria negra segundo Bertho), e a
cabaça negra era avermelhada, posta diante de um muro pintado de
vermelho, e pertencente a Xangô, o deus do trovão dos Iorubá.
O
casal divino dos Fon, do qual um único membro é citado por Bertho,
deveria ser Lissa-Mawy, adaptação fon do casal Orixalá-Yemowo, de
Ifé. (1) Sabe-se, com efeito, que esse culto (Lissa-Mawu) foi levado
da região de Tchetti, habitada pelas Ana ou Ifé, por Na Wangele, a
mãe do rei Tegbessu, e instalado no bairro Djenna, em Abemé, nos
princípios do século XVIII.
Sabemos
que entre os Fon (Herskovits, 1938, v.II:101) Lissa é o elemento
masculino, que simboliza o oriente, o dia, o sol e que Mawu é o
elemento feminino, que simboliza o ocidente, a noite, a lua. Trata-se
de um sistem dualista, mas correspondente, como vimos, ao casal
Orixalá-Yemowo, visível sob a forma de estátuas instaladas lado a
lado no ilésin, lugar de adoração do templo de Obatalá em
Idetá-Ilé, no bairro Itapa em Ifé, muito diferente do casal
Orixalá-Oduduá que, unicamente para o padre Baudin e seus
discípulos, seria constituído por dois elementos machos. A tradição
de Ifé não deixa nenhuma dúvida sobre o caráter agressivo,
hostil, antagônico, das relações existentes entre Orixalá e
Oduduá, que longe de os unir num casal geneticamente estéril, os
separa e os opõe, como se depreende da história antiga do povo
Iorubá.
O
Padre Baudin e Iemanjá
O
padre Baudin, depois de nos ter contado as brigas conjugais entre
Obatalá e Oduduá (feminizada por ele), continua seu relato
indicando (Baudin, 1884 b:13) que "pouco depois dos esponsais de
Obatalá e de Oduduá, esta deu à luz Aganju (o deserto) e a Iyemojá
(a mãe do peixe). Iyemojá teve de seu irmão um filho, Orúngan (o
meio dia, o ar, o firmamento). Mais tarde, ultrajada por seu filho
Orúngan, Iyemojá fugiu inconsolável, sem escutar o culpado que a
perseguia, suplicando-lhe que voltasse. Quando ele chegou quase a
alcançá-la, Iyemojá caiu para trás e seus dois seios cresceram
desmesuradamente e se transformaram em duas fontes que deram lugar a
uma lagoa que se chama Odo Yemojá, a lagoa de Iyemojá, junto de
Okiodan. Mostra-se o lugar em Ifé, a cidade santa dos Iorubá (Ifé
significa crescimento). De Ifé, isto é, do seio de Iyemojá, saíram
numa confusão extrema, todos os deuses e deusas", dos quais
Baudin nos dá uma quinzena de nomes. Essa lista e as características
que ele atribui aos orixás citados confirmam a "confusão
extrema" que reina no espírito de reverendo padre. Ele tornou
feminina Doduduá, transformou Olokun, divindade feminina e mulher de
Oduduá, (2) num deus masculino do mar das gentes de Benim,
considerou erradamente Dada, o deus dos vegetais e da natureza,
confundiu o deus do ferro Ògún com o rio Ògùn, e divinizou o sol
(Orun) e a lua (Oxú), que não são adorados pelos Iorubá.
Constatamos que ele também situa Ifé em Oke-Odan, às margens do
riacho Iyewa, que se encontra a várias centenas de quilômetros de
sua posição geográfica real.
Além
de misturar em outras partes de seu livro (ib.: 38) os orixás
iorubás com os vodus daomeanos, como Ajauto, o antepassado das
dinastias reais de Allada, Abomé e Porto Novo, Baudin inventa
outros, como Adanzolan, (em lugar de Adandozan) um rei de Abomé
destronado em 1818 por seu irmão Ghezo. Confunde igualmente égungun
(ossadas) com egúngún (a alma dos mortos), o que é
deplorável para o compilador de um dicionário iorubá.
As
lendas redigidas pelo padre Baudin foram literalmente copiadas,
traduzidas e publicadas pelo tenente-coronel A. E. Ellis, que
entretanto apimenta a história de Iemanjá perseguida por seu filho
incestuoso (Ellis, op.cit.:45), atribuindo a este último
propósitos galantes e audaciosos quando declarava a sua mãe que
ninguém saberia o que se estava passando, que não podia viver sem
ela, e lhe elogiava, mesmo, a excitante perspectiva de viver (como em
certos lares das upper middle class families da época
vitoriana) entre dois maridos, oficialmente com um e secretamente com
outro.
O
Padre Baudin e Xangô
Pode-se
atribuir ao padre Baudin (Baudin, 1884 b:22), a menos que pertença a
A. L. Hethersett (Hethersett, s/d: 50), uma lenda fantasista fundada
sobre uma falsa interpretação do título Oba Koso, rei Koso, usado
por Xangô antes de se tornar o terceiro Aláfin Oyó (Verger, no
prelo: VIIIa), o rei dos Iorubá. Essa lenda se baseia num trocadilho
publicado pelos dois autores, em que o título Oba Koso aparece como
significando "o rei não se enforcou" (Obá Kòso), uma
frase que os Mogba, partidários de Xangô, teriam pronunciado para
defender a memória do rei contra as alegações de seus inimigos,
que afirmavam que ele teria se enforcado (Obá so) num momento de
fraqueza de ânimo quando abandonou o trono. Esses relatos pitorescos
e divertidos sobre o suposto fim de Xangô foram publicados e
vendidos "em proveito da" Sociedade das Missões Católicas
Africanas de Lyon e da Church Missionary Society (protestante), que
não tinham, nem uma nem outra, interesse algum em proclamar a glória
de um deus pagão. O reverendo Epega (Epega, 1931), apesar da sua
declarada simpatia pela religião iorubá, chegou até a interpretar
o nome do dia da semana consagrada a Xangô, Ojó Jakuta, o dia do
lançamento da pedra (aerolito), como o dia em que Xangõ teria sido
lapidado por pessoas revoltadas contra ele.
Nenhum
dos autores que escreveu anteriormente sobre Xangô relatou essas
bobagens. Crowther declara (Crowther, op.cit.: 227) que
"Obba-Kuso é o rei trovão e dos relâmpagos (literalmente, o
rei de Kuso, o lugar onde se afirma que Xangô desceu vivo sobre a
terra). Foi assim que começou o culto de Xangô"; Jean Hess
(Hess, 1898:145), que esteve algum tempo em Oyó em 1893, também
fala em Ikoso. Nenhum deles faz qualquer alusão a essa história de
enforcamento, divulgada por Baudin e Hethersett e retomada por todos
os autores que "eruditamente" escreveram sobre o Deus do
Trovão.
Os
danos das informações fantasistas do Padre Baudin
Alonguei-me
um pouco sobre os danos da influência das lendas inventadas pelo
padre Baudin e copiadas pelo tenente coronel Ellis, mas era
necessário fazê-lo, pois os absurdos publicados por eles servem de
ponto de partida e de inspiração para outras e de fundamento para
dissertações sobre sistemas teogônicos habilmente estruturados e
ornados com efeites psicológicos e genéticos sofisticados, sobre os
quais falaremos mais adiante. As lendas do padre Baudin tiveram vida
longa, atravessaram o Atlântico, não na memória dos escravos
transportados, pela simples razão de que o tráfico negreiro já
tinha acabado na época em que Baudin convertia os pagões, mas por
intermédio do livro de Ellis, de que Nina Rodrigues teve
conhecimento ao escrever seu livro Os Africanos no Brasil,
através de um certo Lourenço Cardoso, de Lagos, que lhe servia de
professor de inglês e tradutor de nagô. Nina Rodrigues publicou-a,
mas fez notar que "é de crer que esta lenda seja relativamente
recente e pouco espalhada entre os Nagô. Os nossos negros que
dirigem e se ocupam do culto iorubano, mesmo os que estiveram na
África recentemente, de todo a ignoram e alguns a contestam"
(Rodrigues, 1945:353).
Ao
longo de pesquisas feitas a partir de 1948 nos meios não letrados
dessas regiões da África, nunca encontrei vestígios das lendas
inventadas pelo padre Baudin.
Arthur
Ramos, sucessor de Nina Rodrigues, cujos trabalhos são influenciados
pela psiquiatria, encontrou nos textos do padre Baudin conhecidos
através de Ellis (3) o ponto de partida para brilhantes
considerações sobre os temas do incesto com a mãe e do triunfo
sobre o pai fálico. Assim, através de uma dialética elaborada,
Iemanjá acaba por se ver assimilada à mãe fálica!!! (Ramos,
1940:331).
Os
danos do estruturalismo mal utilizado
Antes
de continuar, é preciso expor o que foi escrito pelo reverendo
D.Onadele Epega (Epega, op.cit.:5) por volta de 1931, e a que não
falta interesse, apesar de seu caráter um pouco bíblico. "Há",
diz ele, "seiscentos imalés (que se chamam também orixás)
divididos em dois grupos, duzentos do lado direito e quatrocentos do
lado esquerdo. Não se pode falar dos duzentos imalés que estiveram
entre os primeiros criados sobre a terra. Mas eles eram muito maus e
perversos e foram destruídos. É proibido falar nisso. Ogum serve de
intermediário entre esses antigos imalés e os novos. É por isso
que se diz que na realidade há quatrocentos e um imalés do lado
esquerdo."
Os
descendentes dos Iorubá que vivem ainda no Brasil no decorrer de
certas cerimônias (Verger, 1957:272) fazem saudações tanto aos
duzentos imalés do lado direito quanto aos quatrocentos do lado
esquerdo. Esses número não devem ser entendidos como um valor real:
duzentos, na nação iorubá, era símbolo de um número grande e
quatrocentos, de um número maior ainda.
O
livro “Os Nago e a Morte”
Este
texto de Epega, juntamente com as indicações errôneas do padre
Baudin, serve de fundamento para um livro recente intitulado Os
Nagô e morte (Santos, 1975) onde a autora expõe uma concepção
toda pessoal das leis que regem o que ela chama de "entidades
sobrenaturais" (ib.: 72) dos Nagô (Iorubá).
Trata-se
de um "sistema" habilmente estruturado e embelezado com
considerações pscicológicas e genéticas cujo exame deixa o leitor
inteiramente pasmo!
A
autora do livro diz que essas "entidades sobrenaturais"
estão divididas em dois grupos: de um lado, os orixás funfun (ib.:
75), orixás brancos, com Obatalá-Orixalá como líder, que seriam
os quatrocentos deuses da direita (em lugar dos duzentos de Epega),
deteriam o poder genitor masculino e seriam portadores e
transmissores do "sangue branco", e, de outro, os eborás
(ib.: 79) liderados por Oduduá, que seriam as duzentas divinidades
da esquerda (em lugar das quatrocentas de Epega), deteriam o poder
genitor feminino, constituíriam espécies de "ventres
fecundados" e, graças à elaborada dialética da autora,
seriam, ao mesmo tempo, portadores de "sangue branco, vermelho e
preto". Para ligar tudo, Exu (ib.: 75) -- em lugar do Ogum de
Epega (Epega, op.cit.: 5) -- pertenceria tanto à direita quanto à
esquerda, veiculando o axé (a força, o poder) a partir e e em
direção de uns e de outros e fazendo com que o conjunto do sistema
se intercomunicasse.
Essa
estrutura dualista, onde o masculino é posto em paralelo com o
feminino, seria perfeita se a feminilidade dos elementos da esquerda
não fosse ilusória e não fosse também masculina como a dos
elementos da direita, pois exceto para o padre Baudin e seus
seguidores, Oduduá é do sexo masculino, guerreiro viril, vencedos
dos Igbo, fundador de Ifé, pai de numerosos reis e soberano de
diversas regiões iorubás.
E
ainda mais, um eborá é considerado pelos
Iorubá como um homem valente e temível, definido no dicionário
(Abraham, op.cit.: 73) como strong man, um homem
vigoroso. Com isso, todo o sistema desmorona!
As
substituições de Ogum por Exu explicam-se pelo interesse
demonstrado pela autora por este último orixá, ao qual consagrou
diversos estudos (Santos, 1971 e 1973).
Ela
coloca como princípio que, “Exu é o elemento dinâmico da
transmissão do axé, não somente de todos os seres sobrenaturais,
mas igualmente de tudo o que existe”, (Santos, 1975:130), ainda que
ela nos diga (ib.: 15) que "seus textos não devem ser
considerados como uma supervalorização de Exu".
Ela
porém não deixa claro, “onde começa a definição de Exu e onde
termina a do axé”, da força, do poder. Ela dá a impressão de
que Exu é o axé, o que constitui não apenas um notável exagero,
mas também um ponto de vista falso.
Se
a autora do livro conta o poder soberano e a universalidade de Exu,
não faltam lendas em que, ao contrário, Exu foi vencido por
diversos orixás, quando surgiram entre eles conflitos provocados por
questões de primazia e rivalidades.
A
expressão "dinamismo" aparece constantemente nos escritos
da autora, e esse leitmotiv não deixa de evocar as hipóteses
sobre "a força mágica e suas relações com o dinamismo na
ciência moderna" (Saint Yves, 1914) dos ocultistas do fim do
século passado. Essa psicologia dinâmica e genética (ib.: 121)
inspirou a um deles, Mr. Ravaisson, frases cheias de uma poesia um
pouco antiquada: "O espírito não se manifesta somente no homem
e nos animais superiores, mas murmura na planta e geme na pedra"!!!
Dessa
forma celebrava ele a energia psíquica encarada sob uma forma
dinâmica... clara à autora, mas talvez menos familiar ao babalaô
iorubá.
No
decorrer de suas investigações, a autora recolheu um determinado
número de "declarações" em apoio a suas teorias (Santos,
1975:131) sobre a universalidade das atividades de Exu, mas não
posso deixar de lembrar que durante a pesquisa de campo geralmente se
estabelece uma situação desagradável entre o pesquisador e a
pessoa entrevistada. Esta última pega rapidamente o sentido e o
pensamento do pesquisador, e cheia de boa vontade, dá as respostas
que casam com a hipótese da pesquisa desejada. Ainda que o
informante não deforme voluntariamente os fatos, tenta ao menos
exprimir-se em termos que ele quer tornar compreensíveis ao
interlocutor, sendo o resultado a maior satisfação deste último e
um grande prejuízo para a verdade. O abade Bouche reconhecia isso
entre 1866 e 1975 (Bouche, op.cit.: 109), dizendo "que os
intérpretes negros visam menos a ser exatos do que a não
descontentar o branco (freqüentemente irascível quando se vê
contrariado em suas teorias pré-estabelecidas), (4) e eles (os
intérpretes) não se incomodam com interpretações que sabem ser de
seu gosto, ou, pelo menos, de suas idéias".
É
um pouco isso o que deve ter acontecido com as pesquisas da autora.
Fui freqüente testemunha da enérgica insistência e da paixão com
que ela dirige suas entrevistas, e também do espírito de
"compreensão" do babalaô que respondia a suas perguntas.
Trabalhei cerca de 15 anos com ele e aconteceu-me recolher as mesmas
histórias publicadas pela autora, mas as duas versões apresentam,
às vezes, variantes significativas. É verdade que no meu caso as
informações eram espontâneas, porque eu não pretendia com essas
histórias provar quaisquer teorias pré-estabelecidas.
Esse
babalaô tem, entretanto, memória muito segura, e aconteceu de ele
me contar a mesma história nos mesmos termos com dez anos de
diferença. Mas também aconteceu, quando perguntei se conhecia uma
história contada por outro babalaô, de a contar por sua vez, não
sem eu notar que certas frases que eu havia dito para o orientar
apareciam com insistência, para me demonstrar que não só ele
conhecia a história, mas que era a história que eu desejaria ouvir.
Parece-me
que foi nesse mesmo estilo de oratória que o nosso babalaô deu à
autora as informações desejadas por ela sobre a multiplicidade de
exus. “Ele satisfez os desejos dela”, chegando mesmo a lhe dar os
nomes dos exus pessoais dos 256 odus de Ifá (Santos, 1975:132),
atribuindo a esses exus imaginários, sem maiores preocupaçòes, os
mesmos nomes dos citados odus.
A
autora de Os Nagô e a morte afirma igualmente que
entre os Nagô-Iorubá existem três espécies de sangue (ib.: 41):
1.
O "sangue" vermelho
2.
O "sangue" branco
3.
O "sangue" preto.
Cada
um desses "sangues" comporta:
- "sangue" do reino animal
- "sangue" do reino vegetal
- "sangue" do reino mineral
Não
se sabe muito bem por que e onde a autora foi procurar todos esses
"sangues", mas certamente não foi nas tradições
conhecidas dos Nagô (Iorubá). Além disso, salvo quando cita o
"sangue vermelho do reino animal" (o sangue dos animais
sacrificados), ela fala de seiva, de esperma, de secreções, de
hálitos, de metais, de diversas bebidas, de carvão e de cinza, que
parecem difíceis de classificar, ainda que simbolicamente, sob o
nome de "sangue".
Encontram-se
algumas vezes três cores em certas histórias de Ifá, mas elas são
classificadas noutra ordem: branco, vermelho e preto, que evocam
alternadamente a cor do céu durante o dia, no crepúsculo e quando
chega a noite. Várias páginas do livro de Victor Turner (Turner,
1967:68-81), The forest of symbols, citado na
bibliografia do livro da autora, são consagradas a essas três
cores, mas trata-se de um ritual ndembu que não tem nada a ver com o
nagô (iorubá).
Outros
exemplos de certos tipos de "sangues" dados pela autora em
apoio à sua teoria são ainda menos convincentes: ela dá como
exemplo de "sangue branco vegetal" (ib.: 41) o Iyèròsùn.
Ela declara que o seu nome científico é Eucleptes (em
lugar de Euplectes) Franciscan F., que é um
pássaro do mais belo "vermelho", o cardinal bird
dos ingleses (Abraham, op.cit.: 316). Pode tratar-se de uma planta do
mesmo nome de Iyèròsùn, cujo nome científico é Baphia
nitida Lodd., Papillionaceae, da qual se extrai uma tinta
vermelha para tingir lã (Dalziel, 1948:232) e lenços vermelhos
chamados bandana. Esse "sangue", para empregar a
expressão da autora, dificilmente passaria por branco!!!
Etnografia
religiosa iorubá e probidade científica
O
que nos entristece e nos constrange no livro da autora -- que é sua
tese de doutoramento de terceiro ciclo pela Sorbonne -- não é tanto
o fato de ela haver-se inspierado em informações errôneas ou
provenientes de etnias não-nagô, mas o fato de que, para edificar e
"estruturar" sua obra, ela manipule e modifique os
documentos citados em apoio ao sistema concebido por ela, o que é
grave e constitui falta total de probidade científica.
É
difícil não mencionar a constante e sistemática confusão criada
por ela entre igbádù, a cabaça dos odus, possuída por
raros babalaôs e descrita por Maupoil (op.cit.: 84-111), Johnson
(Dennett, 1906:253), Bertho (1951:331-350) e Bascom (1969:82) e igbá
Odùa, de que falam, como vimos acima, Crowther e em seguida Baudin,
Ellis e seus seguidores, porém com características já modificadas.
A
autora escreve, por exemplo, que "segundo certos mitos (ib.:59),
Odùdua, igualmente chamado de Odùa, é a
representação deificada de Iyámi (a feiticeira), a
representação coletiva das mães ancestrais e princípio feminino,
origem de tudo". Assim, Oùa corresponde a Obatalá ou
Orixalá, que é o princípio masculino.
A
autora faz alusão (ib.: 108), para justificar essa afirmativa, a uma
história de Ifá por mim publicada (Verger, 1965:151 e 205-206), na
qual ela substitui Odù por Odùa e atribui em
conseqüência a Odùa o que está dito a respeito de Odùna
minha história. Ela escreve então: "Três orixás, Odùa
[Odù no meu texto], Obarixá, (Obatalá-Orixalá) e
Ogum chegaram à terra. Odùa [em vez de Odù] é
a única mulher entre eles e queixa-se a Olorum (Deus supremo) de que
não tem nenhum poder. Olorum escolhe-a para ser a mãe para a
eternidade. Ele lhe dá axé (o poder) sob a forma de uma cabaça
contendo um pássaro, símbolo do poder das feiticeiras..." Mas
trata-se, repetimos, de Odù e não de Odùa na
história publicada por mim, tendo ela feminizado Odùa
(Odùduà), que é do sexo masculino. Não se trata de um erro
de leitura ou de redação, pois a autora deixa permanecer Odù
em várias passagens de seu livro (ib.:109, linhas 18 a 21).
Reciprocamente,
ela troca o Igbá Odùa por Igbádù (ib.:66),
quando escreve: "Segundo os autores mais antigos, partindo do
rev. Crowther e passando pelo rev. Bowen e tantos outros, o Igbádù
tem sido objeto de considerável interesse..." Graças a essas
confusões, atribuindo a Odùa (que é masculino) as
características de Odù (que é feminino), a autora de Os
Nagô e a morte justifica o sistema dualista imaginado por ela.
Contrariamente
ainda ao que escreve a autora em questão, não existem seiscentos
imalés formando dois grupos onde quatrocentos machos se opõem a
duzentas fêmeas, que também não formam um grupo hierárquico,
único e idêntico para o conjunto do território iorubá. O culto
dos orixás está ligado à noção de família, à família
entendida como originária de uma cidade bem determinada.
Resultam
daí, de acordo com as diversas regiões, variações locais onde os
orixás que ocupam uma posição dominante em certos lugares são
toalmente desconhecidos em outros. O culto de Xangô, que ocupa o
primeiro lugar em Oyó, é oficialmente inexistente em Ifé, onde um
deus local, Oramfé, é ligado ao trovão em seu lugar. Oxum, cujo
culto está muito evidência na nação Ijexa, é ausente na nação
de Egba etc.
A
posição de todos esses orixás depende da história das cidades
onde reprentam divindades protetoras. Xangô, quando vivo, era o
terceiro rei de Oyó; Oxum fez um pacto em Oxogbo com Laro, o
fundador da dinastia dos reis locais; Odùdùa, fundado da cidade de
Ifé, cujos filhos se tornaram reis de outras cidades iorubás,
conservou um caráter mais histórico e até mais político que
divino e não tem nada a ver com os "ventres fecundados" da
autora de Os Nagô e a morte.
Outros
orixás têm uma área de difusão muito maior, como Obatalá, o
antigo rei dos Igbô, divinizado (5) como deus da criação, ou Ogum,
deus dos ferreiros e dos que utilizam o ferro, cuja importância
ultrapassa o quadro familiar de origem.
Algumas
divindades disputam entre si as mesma atribuições em lugares
diferentes: Xangô em Oyó, Oramfé em Ifé, Aira em Savé, são
todos senhores do trovão; Ogum encontra êmulos guerreiros e
caçadores em diversos lugares, como Ija na região de Oyó, Oxóssi
em Ketu, Oré em Ifé, e como Logunede, Ibualama e Erinle na nação
Ijexa; Osanyin em Oyó e entre os Egba desempenha o mesmo papel
curandeiro que Elesijé em Ifé.
Em
vista dessa extrema diversidade e das numerosas variações de
coexistência entre os orixás, é impossível ficar cético diante
de concepções sistematicamente estruturadas.
Nessa
constante procura de elementos diversos para elaborar seu sistema
dualista, a autora não se contenta com "os orixás masculinos
da direita e os eborás pseudo-femininos da esquerda", todos em
princípio ancestrais longíquos divinizados, mas passa do domínio
dos deuses para o das almas-do-outro-mundo e das feiticeiras,
reunidas, escreve ela, em duas sociedades, uma de antepassados
masculinos reservada aos homens agrupados em volta dos egúngún,
e outra de antepassados femininos reservada às mulheres agrupadas em
volta dos geledé, pessoas mascaradas (sempre homens,
entretanto) que dançam para acalmar e tornar favoráveis as Iya Aje.
Essas feiticeiras controlam a fecundidade das mulheres e têm
tendência a manifestar seu mau humor, desencadeando diversas
calamidades, como secas prolongadas que destroem as colheitas,
invasões de ratos, epidemias e outras manifestações maléficas.
A
autora escreve poeticamente (ib.: 92) que "as folhas brotadas
sobre os ramos e os troncos (das árvores) simbolizam descendentes.
As palmas recém-nascidas do igi-opé (palmeira) chamadas
màrìwò, (6) constituem a representação mais importante de
Ogum (ib.:93). Ela aproxima então esse màrìwò (que consta
de três sílabas de tom grava) a outro màríwo (7) (cujas
sílabas são de tons graves, agudo e médio), que em iorubá forma
uma palavra completamente diferente da primeira na significação e
na grafia. Esse segundo màríwo significa "a voz ou
grito de Egúngún".
Aproximando
essas duas palavras, a autora escreve (ib.:126): "os Ojé
constituem o corpo sacerdotal do culto (dos Egúngún)", e
acrescenta "Màrìwò [em vez de Màríwo] é o
nome simbólico dos Ojé, associado às palmas desfiadas do
igi-òpe, os descendentes da palmeira, identificada com os
ancestrais". Tinha ela porém escrito o contrário num trabalho
anterior (Santos, 1969:98): "O Ojé é também conhecido
como Màrìwò [em vez de Màríwo]. A relação deste
nome com o màrìwò, palma desfiada, tem ainda de ser
estabelecida."
Ela
fundamenta então agora uma teoria bastante sofisticada, confundindo,
entretanto, e reunindo sob uma mesma designação noções que são
na realidade diferentes, sem haver mesmo entre elas nenhuma relação
de significado. O mais grave é que o conteúdo da obra Os Nagô e
a morte, como aconteceu com escritos precedentes, citados no
início deste artigo serve de referência e ponto de partida para
novos trabalhos baseados assim em informações inexatas. Existe na
autora uma tendência um pouco hoffmanesca para as
almas-do-outro-mundo, as feiticeiras e Exu.
Ela
tem todo o direito de seguir suas inclinações, mas mas onde estamos
menos de acordo é quando, partindo de dados inexatos, algumas vezes
manipulados, ela edifica "sistemas" de uma lógica
impecável, muito bem acolhidos, diga-se de passagem, nos congressos
científicos internacionais, mas que, examinados com cuidado, são um
tecido de suposições e de hipóteses inteligentemente apresentadas,
não tendo nada a ver com a cultura dos Nagô-Iorubá e correndo o
risco de contaminar as tradições transmitidas oralmente, ainda
conservadas nos meios não-eruditos.
Nós
não estamos mais no tempo de Nina Rodrigues, quando as tradições
eram ainda bastante fortes para negar e rejeitar as extravagâncias
do padre Baudin, do tenente-coronel Ellis e de compiladores e
intelectuais diversos.
NOTAS
- Quando uma palavra passa do vocabulário iorubá para o fon, tem sempre suprimida a vogal do início e os r se transformam em l.
- "Olokun chegou em Ifé ao mesmo tempo que Odùdùa. Ela era uma mulher elegante que ele gostava de exibir em público, adornada com muitas joias."
- De fato, parece que Ramos teve conhecimento dos textos de Ellis através de Nina Rodrigues. Escreve ele na página 31 de O negro brasileiro que "adianta Ellis que este mito de Iemanjá é comparativamente recente", porém esta frase fora escrita por Nina Rodrigues, sendo opinião pessoal.
- A frase entre parênteses é do autor deste artigo.
- Obatalá depois de sua derrota perdeu o trono, mas passou à categoria de divindade.
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Transcrito
do original por Baba Guido Olo Ajaguna
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